Pra eu aprender
Hoje quando acordei Eloise já tinha saído, é verdade
que ela disse que iria trabalhar bem cedo, lógico que eu não acreditei, mas o
fato de eu acreditar ou não, não muda o essencial: ela se foi sem um bilhete,
sem café, se bem que, não devia ter pó de café, porque ela, que gosta de café e
eu não, sempre se esquece de comprar, diz que eu deveria, mas não lembro de pôr
na lista porque só gosto de chá e mal passo pelo lado do mercado onde fica o
café, se bem que “é bem do lado” ela me disse uma vez e achei muito arrogante
porque é um fato que Eloise é arrogante, mas isso não modifica em nada o fato
de eu amá-la, arrogante e talvez um pouco grossa, me lembro do dia em que fomos
levar o pai dela no aeroporto e ela ficou de mal humor o tempo todo, ela dizia
que já estava “de saco cheio do velho em sua casa”, sim era assim mesmo que ela
falava do próprio pai e queria “despachá-lo logo”, falava isso rindo, mas eu
achava bem estranho, logo depois ela mordia a minha orelha daquele jeito que
ela faz que eu fico bem louco, então logo estávamos girando na cama como dois
bichos, porque ela me faz ficar selvagem, mas naquele dia no aeroporto eu vi e
olhava pelos cantos dos olhos pois estava constrangido, o pai dela ali com
lágrimas nos olhos, ele era um senhor bem sentimental, mas ela dizia que isso
era um saco, ela dizia assim mesmo “é um saco” e sublinhava “saaaco” pra eu
entender direito porque Eloise diz que eu nunca entendo as coisas direito, já
brigamos muito por causa dela dizer isso de mim, quer dizer ela briga, eu não,
eu fico olhando ela brigando comigo e esperando tudo passar porque ela me
assusta nessas horas , quando os olhos verdes dela ficam mais verdes e vão
criando uma chama negra no fundo que são pra mim como uma sombra do inferno, então eu posso ficar esperando qualquer coisa,
na maior parte das vezes ela lança um objeto qualquer que tenha nas mãos, uma
vez foi na cama logo depois de fazermos amor e não sei como ela teve energia
depois de tudo o que tínhamos feito, mas
ela arremessou o meu cinzeiro de cristal contra a porta do quarto, esse
cinzeiro foi minha mãe que me deu, eu nem fumo, mas mamãe dizia que toda casa
tem que ter cinzeiro “pras visitas”, eu tive que dar explicações depois do
sumiço do cinzeiro e não foi fácil, tive que dizer que um dos meus amigos
escondeu-o “de sacanagem”, só que essa desculpa foi ruim porque mamãe ainda
espera a volta do cinzeiro, sempre pergunta: “E devolveram o cinzeiro? Será que
foi o Renato? O Zé? Não deve ter sido o teu chefe, não é? ”, por isso, até hoje
eu ando atrás de um cinzeiro igual pela cidade, toda vez que passo em frente a
uma loja de cristais eu entro por causa desse cinzeiro, uma vez Eloise estava
comigo e quando eu falei que ainda procuro o cinzeiro, ela disse que eu sou “um
idiota”, ela disse assim mesmo e ainda repetiu “você é mesmo um idiota” , nesse
dia eu fiquei muito puto mesmo com ela , peraí,
também já é demais chamar alguém de idiota, não lembro de ser chamado
assim desde a sétima série quando eu era goleiro do meu colégio, o Santa Izabel,
mas o Renato que foi beber comigo nesse dia me disse pra eu não levar à sério
“a Eloise é assim mesmo, é o jeito dela”, mas o Zé acha que não , acha que eu
não posso deixar isso acontecer, eu sei que não posso, mas quando eu vejo ela vem de coisa e tal
comigo e vamos num cinema e começa a me chamar de “amor” , e me chama no apartamento dela e me recebe de
cinta-liga, me joga no sofá e me manda
assistir, ela fala assim mesmo: “assistir”, então ela fica lá dançando , liga a
vitrola, eu adoro vitrola e ela tem uma , ela coloca a trilha de Blade Runner,
Chet Baker, Miles Davis, e fica lá, os olhos verdes me hipnotizando , ela nunca
me deixa levantar , nem interromper o “número”, ela chama de “número”, mas ela
nunca tira a roupa ora merda, eu fico explodindo , uma vez ela até prendeu os
meus braços com umas correntes grossas , eles ficaram vermelhos uma semana ,
ainda bem que eu trabalho no fórum de camisas de mangas longas, porque senão ia
ser uma gozação, mas pior foi o dia que ela pegou uma foto da minha ex-namorada
numa gaveta, além de fazer eu rasgar , ficou uma semana sem falar comigo ,
disse que era pra eu aprender que eu fui um menino “muito cruel”, foi horrível
porque o apartamento dela estava pintando e ela está até agora “passando uns
dias comigo”, no início sentávamos juntos e eu falava “passa a salada” e ela
ficava lá olhando o laptop e me ignorando, acho até que acessou a conta de vários ex-namorados pra me
provocar e quando eu dizia “vamos conversar” ela lançava os olhos verdes na
minha direção e parecia a minha professora primária quando eu molhava as
calças, que tive esse problema até os oito anos, então ela ia tomar banho e
deixava a porta aberta, ficava cantando e dançando e passando sabonete, mas eu
não podia entrar, ela dormia nua do meu lado, mas não me deixava tocar nela,
foi horrível e um dia até ela sumiu com o meu cachorro, ela odeia o meu
cachorro eu tenho certeza, embora ela não admita, ele voltou dois dias depois
todo machucado pra casa, deve ter apanhado muito de outros cachorros mais
espertos, que ela acha que o meu cachorro “é um bobão”, ela diz assim mesmo,
que ele é “um bobão, o Peter é um bobão”, mas foi o Peter que mordeu ela, mesmo sendo bobão e ela gritou
muito e fez um escândalo mesmo tendo sido só um arranhãozinho, mas eu sei
também que foi o Peter que fez ela sair
cedo sem café hoje, ele late sem parar quando acorda e ela não aguenta, ela
disse ontem a noite “eu vou matar esse cachorro” e depois riu pra fingir que
não disse o que tinha dito, mas ninguém mexe com o Peter, ela disse ainda:
“amanhã cedo vou trabalhar”, é mentira , eu sei que ela não foi trabalhar, ela
foi demitida, foi o que o Renato falou , ela não me contou mas o Renato sabe, porque ele trabalha na mesma empresa, como eu disse, o Peter não suporta a Eloise,
então eu resolvi , fiz as malas dela e agora vou ao mercado comprar chá, e
comida de cachorro.
PS - Estou chamando de "Fora da Gaveta" todo trabalho literário que eu publicar aqui a partir de hoje, seja poesia, conto, pedaço de conto , trecho de romance, cena de teatro etc...
Tem algumas coisas dessa personagem que parece um pouco com alguém que eu conheço... rs
ResponderExcluirNossa, coitado de você , ela é muito cruel rsrs...graças a Deus não se parece com ninguém que eu conheço. Já esse personagem masculino criei em homenagem a um velho amigo que costuma sofrer na mão das mulheres...
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