quarta-feira, 19 de junho de 2019

O homem da casa


Um dia você acorda descasada, vivendo num casa que não é sua, não sabendo  a renda que tem, ou do quê deve prestar contas a partir de então e descobre que aquela família  tão simpática que  tem,   na verdade,  acredita firmemente , como no século dezenove ,  que os homens da família devem ser os maiores beneficiários da herança que os avós ou os pais ou as fadas deixaram.

Essa tomada de consciência é um choque e talvez dure uns anos, dependendo do seu grau de vontade em lidar com a realidade. A partir de então você deve ter  três coisas em mente que te acompanharão: os pesadelos, os cabelos brancos, as preocupações.

Os pesadelos envolvem, principalmente, cobras , ratos,  e outros bichos nojentos.Os cabelos brancos são uma chateação  que a farmácia próxima resolve, mas o pior e perceber que você não quer ser homem. Para isso não há remédio mas...

Parabéns, agora você é O HOMEM DA CASA!

A partir de então fique atenta a vários movimentos masculinos: homens que enviam relatórios com   muitos números , eles são enganadores (NUNCA OS LEIA , SEM UM ADVOGADO) ; homens que dizem que vão te proteger (eles não vão, nunca vão); homens que não pagam a conta dizendo que você quem quis assim, que as mulheres criaram isso  (eu nunca quis isso...rs)

 (Então você chora e chora e se sente frágil. E desejaria ser um homem forte, aquele que troca o pneu e mexe com brocas e parafusos, mas adivinhe só:  você é esse homem!)

Vantagens: Se sua filha der sinais de indisciplina, você pode bater na mesa, gritar em alto e bom som: “Quem manda aqui sou eu!” Depois chore no chuveiro, à beira do fogão  ou coisa que o valha. Não deixe que ninguém te veja nessa situação. NUNCA!

 (Bem vindo ao insuportável mundo dos adultos!)

Sim, você é seu homem e tão perdido quanto qualquer um deles. A boa noticia e que  já sabe que eles são como você; a ruim,  é que eles acreditam que são melhores ou se valem dessa crença gerada pela sociedade.

Virginia Wolf em um “Um teto todo seu”,  refere- se ao fato de que as mulheres historicamente não produziram tanto quanto os homens por terem que organizar a vida deles. Ela divaga sobre algumas questões sobre a criatividade das mulheres, como uma sobre  se a irmã de Shakespeare poderia ter sido  o próprio Shakespeare ou coisas como essas, se tivesse um mundo organizado, um teto todo seu, como ela fala no livro.

 Assim, ao longo da historia elas foram  mães, criadas, musas, prostitutas, enquanto os homens criavam o mundo. A julgar pela biografia de alguns pintores, por exemplo, Virginia Wolf não estava muito longe da verdade. Pense em Turner,   em Klimt, Picasso, todos eles se aproveitaram de um modo ou de outro de um toque feminino em suas vidas. Eram elas que estavam lá limpando os vidros, arrumando as tintas, posando para seus retratos, comprando as garrafas de vinho pra que eles produzissem suas obras de arte.

Segundo  essa premissa Woolfiana,  então as mulheres organizam e os homens produzem.Que mundo injusto!!!

Big Eyes é um filme de Tim Burton que conta exatamente a historia absurda de Margareth Keaner, a pintora icônica dos anos cinquenta que deixa que seu marido , mesmo que sem querer,  leve a fama pelos quadros que pinta. Ela não consegue sustentar a farsa  que se torna insustentável pela ambição do marido. Como mulher, é difícil não se impressionar com essas histórias. Não fosse eu uma mulher desorganizada, que dificilmente produziria qualquer coisa se tivesse um escritório organizado e tempo de sobra. Fico pensando nos meus momentos de turbulência.

Foram eles que me levaram a escrever, criar, pensar na vida, inventar novas receitas, enfim essas coisas inúteis de que minha vida se ocupa...

Sou dessas que quando um terremoto acontece numa esquina pega uma caneta e cria anotações malucas em cadernos (devo ter uns 20, espécies de caderno “da Vinci”, com desenhos, pensamentos, citações, histórias, contos,  loucuras, poemas, diários, aforismos, delírios), nem sei muito bem pra quê. Que ele nunca se conclua a não ser na minha morte! Fico pensando se ele se concluiria se eu tivesse um teto todo meu?

Acho que não...
Sou caótica por natureza ou desenvolvi algo que já se sabe bastante hoje: a ideia de que as mulheres por evolução  conseguiram desenvolver a técnica do caos.  Sempre me impressionou a história que ouvi na faculdade sobre as irmãs Bronté e  de como elas,  filhas de um pastor altamente conservador na Inglaterra Vitoriana, escreveram clássicos tão fortes como “O morro dos ventos uivantes”, na sala de estar escondida dos olhos do pai austero, entre um bordado e outro . Acho que nenhum homem conseguiria fabricar um personagem  como Heathcliff nessas condições. Só mesmo uma mulher podia conceber aquela paixão visceral de um Conde de Monte Cristo elevado ao cubo. Convenhamos,  ele é de tirar o fôlego com tudo aquela força da Inglaterra vitoriana:  a paixão,  a força erótica,  o vulcão animalesco.

Juliete Binoche e Ralph Fiennes como Cathy e Heathcliff

Como Emily Bronté escreveu aquele personagem com tanta força? Tudo se deveu ao impedimento? Ao teto que não era dela? São as mulheres condenadas a produzirem em meio ao caos, sem silêncio, sem um teto todo seu, com o filho chorando no quarto ao lado e a louça por lavar na pia?

Quantas mulheres ainda serão descobertas no futuro dentro de um passado que não tiveram vez? Quantos baús fechados existem por aí?