“Sempre tive um caso de amor com as ruas...”
Crônica de um louco amor, Charles Bukowski
Crônica de um louco amor, Charles Bukowski
Imagine um mundo sem ruas, onde todos vivam em
condomínios isolados?
Minha filha me fala de um apartamento
sensacional que a amiga comprou no recreio. Tem sauna, piscina, playground,
sala de yoga, hamburgueria, correios, etc etc etc.
Logo pra mim, essa menininha de rua que vos
fala criada em casa de vila. A rua era o nosso playground particular e as
calçadas, onde as crianças corriam livremente sem problemas brincando no dia a
dia e nas vilas próximas às casas da rua (as vilas eram os cantos e becos magníficos e amados).
(Mas no meu bairro estão acabando com todas as
vilas antigas pra construir prédios hediondos , iguais entre si. Niterói é a
falange dos construtores sem escrúpulos
e dos ricos de mau gosto e sem tradição, sem dó , sem piedade, sem senso de
história: para isso eles vão a Europa uma vez por ano bater fotos e se dão por
satisfeitos enquanto enfeiam a própria cidade...
Se
deixarmos transformarão isso aqui numa Barra da Tijuca com direito à “Estátua
da Liberdade” e pior: colocarão suas horrendas mansões impedindo o acesso às
praias, como aliás, já aconteceu em
Camboinhas , sem que muita gente percebesse e o prefeito “felizinho” da época, permitiu .
Mas, ainda não acabaram as previsões horríveis: aquele início
horroroso de Itacoatiara parecendo Miami, já é prenúncio de algo muito ruim. O
fim estará próximo quando surgirem quiosques
vendendo taças de prosecco(como em Búzios) e louras platinadas da coluna social
do início ao fim,os doidões do pampo sumirão e Itacoa virará a Babilônia que
essas pessoas almejam: ridícula,
frívola, espetaculosa. Como Itacoa é uma
praia amada por meio mundo, espero que esse meio mundo impeça que isso
aconteça...
Onde o homem chega , tudo se estraga.. Isso é
um fato!)
Feita essa digressão infeliz, digo que foi num
fundo de vila que criei um palco improvisado na garagem de meu pai(com
direito à cortina de abrir e fechar) pra
fazer o conto de Natal de Charles Dickens (versão Disney) encenada pelos meus
amigos de oito anos e dirigida por mim(de 11 anos, um “prodígio”! rs), cuja
plateia foi formada por nossos pais, que
se impressionaram vivamente(uns bobos!) com nossa criatividade infantil tão
natural quão tão pouco explorada por eles...uma pena!
(Eram tempos duros. Nos colégios cantávamos o
hino da bandeira, decorávamos tabuada e verbos irregulares em inglês e
português , enquanto os adultos não tinham a mínima ideia do que se passava nas
nossas cabeças..)
Seja como for, na rua é que conhecíamos as
loucas (no meu caso, a vizinha da frente); o padeiro bem humorado da esquina; o
borracheiro sempre sujo que nunca nos
dava um sorriso; os árabes da casa rica da esquina e suas festas barulhentas; o
filho brigão da casa de fundos; o que vivia pelado na casa da frente ; o babão
que quando falava cuspia muito em todos
e fazia as crianças pequenas rirem...
A rua e suas impressões: ela enriquecia aqueles que a vivenciavam.
É na rua que você tem a experiência das diferenças.
Só quando se está na rua é que você
observa o outro. Mas se você mora num condomínio fechado pra rua e ali tem tudo
o que precisa, você deixa de viver essa coisa essencial: o contato com os
outros, de outras classes, com outras ideias, com outras posturas, outras
dimensões de vida...é um mundo na bolha, literalmente!Você vai morar entre
iguais (com o mesmo nível social, as
mesmas ideias, as mesmas escolas, o mesmo trânsito, o mesmo restaurante, blá, blá,blá.)
A rua é o lugar do imprevisto. E mesmo hoje, em que a minha infância já vai
longe(e eu nem percebi...rs), ela ainda é o lugar onde você encontra todo tipo
de gente e de experiência; onde explode uma bomba, onde uma árvore tomba
atravessada; onde alguém é atropelado ; pombos
são alimentados por idosos; uma louca de cabelo azul passa gritando que vai
matar alguém; o sapateiro é assaltado; o relojoeiro muda-se;uma procissão surge
inesperada da igreja em frente; alguém grita vendendo sucata: “geladeira velha, máquina velha”;e, num dia um
poste cai e, de repente, todos aqueles moradores que jamais se falaram estarão
todos lá de pijama à meia noite, convivendo e se reconhecendo de outros momentos partilhados na mesma padaria,
no mesmo supermercado, no mesmo ponto de
ônibus, no mesmo boteco belo, velho, sujo e português onde comeram um bolinho
de bacalhau num dia em que choveu demais...
A rua, essa coisa tão antiga, da qual eu já
tenho saudades.
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