sábado, 22 de março de 2014

Da série Rio pra inglês não ver (A louca da van)

Atrasada de novo e uma van me “resgata”. Tento pagar no início, o que é o certo e está escrito na porta de todas as vans cadastradas, mas a cobradora não recebe. Diz que “só depois”. Logo que entro sou quase arremessada para a porta numa arrancada fenomenal do motorista. Seguro firmemente o apoio de banco que já está meio capenga de tanta mão que passou por ali tentando se segurar dos solavancos e a cobradora, confirmando a impressão que tive sobre ela, de uma carioquice macunaímica, me diz:

- Isso mesmo, moça, segura mesmo, que o piloto é louco-  e ri feliz,  como se isso fosse uma grande vantagem da sua van.

E ainda completa:

- Guarda bem a cara dele, cabeça branca, moreno.

Deve ser o marketing dela para: “volte sempre” ...

No Rio é assim: motorista é “piloto”, e, convenhamos, a julgar como “voam”, é justa a denominação.

A van segue a toda. A viagem é completada pelas histórias da cobradora, que resolveu repassar toda a sua vida aos estranhos. Teoricamente, é para o piloto que ela o faz, mas, do jeito que fala alto e espalhafatosamente, é impossível prestar atenção em outra coisa.

Conta suas peripécias na escola adventista de Caxias onde: “as menina usava (a concordância verbal era essa) a saia dobrada, merrrmo”, mas ela “não podia”, então ela se vingou “tacando cabeça de nego no banheiro” e explodiu o vaso e tudo. O quanto xingou e foi suspensa, quando encheram de tachinhas a sua cadeira, etc, etc.  Ela contava tudo isto rindo, orgulhosa de si mesma.

Passageiro vai, passageiro vem, ela solta pra um no meio de uma das suas histórias escabrosas:

 - Mas...esse cara que tava a fim de mim no meu curso, era coroa já que nem o senhor....

A cara do tal “senhor” foi de causar compaixão. Ele, que até já estava se engraçando por ela...ser chamado de coroa sem dó deve tê-lo brochado completamente.

E solta pra outro, que pergunta onde fica determinado lugar:

- Sei lá onde é isso, não sei nem onde eu moro.

Quando a maioria dos passageiros já tinha descido (mas eu ainda não) ela diz, de repente, a mulher dos grandes instintos:

- Eu estou é com vontade de brigar com alguém, tô louca pra brigar, tem anos que eu não brigo.

Então vieram, rápidos, os relatos de violência “inocente”: Uma mulher que tomava remédios controlados bebeu muita cerveja e cismou com ela num bar “assim do nada”, então ela pegou “um litrão” (o que seria isso? fiquei pensando). Mas não podia pensar muito porque ela vomitava as palavras, enfim a tal mulher cismou com ela e partiu pra cima. Ela não deixou por menos, com o litrão ameaçador nas mãos, no que  o dono do bar recorreu:

- Não atira o litrão, não faz isso não, você vai se arrepender...

E a mulher partiu com tudo pra cima dela, rasgou a sua roupa e ela ficou lá, com a quase nudez.

- Graças a Deus, que eu estava com um soutien direitinho de oncinha. Foi isso mesmo Marcão, eu cheguei em casa com a blusa rasgada, com o soutien aparecendo – ela contava pro motorista.

Depois engatou numa historia de uma inimiga que:

- Porra, ela tava tomando banho na minha casa, não tinha nem casa pra tomar banho, porque brigou com a família, dormir eu não deixei, mas ela tomava banho todo dia lá e me fazer isso!?!?!

O Marcão pondera:

- Ela é legalzinha.

- Legalzinha???? Legalzinha é o c...ela foi tentar fazer fofoca com o meu homem. Ah, não prestou...eu fiquei louca. Tentei pegar uma faca, me tiraram; tentei uma lâmina, não deixaram, arrumei um pedaço de pau. Batia na minha cintura o pau, cheinho de farpa.Fiquei na esquina esperando.  

(E, nessa altura do relato, ela fez suspense. Cheguei a imaginar a música da pantera-cor-de –rosa...)

 - Ela voltou, eu passei o pau na calçada e perguntei: Vem cá tu foi falar isso, isso e isso pro Flávio?

(Notem o pronome "isso"...)

- Eu não...

- Foi a Patrícia que falou que tu queria falar pra ele que eu fiz isso, isso e isso.

- Eu não.

Eu passei o pau de novo na calçada.

- Eu vou repetir eu acho que tu não entendeu....é verdade que tu falou “isso” pro Flávio?

(E o pau comeu, como vocês podem imaginar.)

Ela ainda disse:

- Eu me atraquei com ela queria marcar a cara dela. Vagabunda tem é que ficar com a cara marcada!!!

O Marcão a essas alturas já parecia assustado e eu, no meu eterno delírio literário pensei em Nathaniel Hawthorne( A Letra Escarlate), livro que me impressionou muitíssimo...”vagabundas tem que ser marcadas, vagabundas tem que ser marcadas”, a frase martelando na minha cabeça...

Ela continuou, enquanto eu delirava com o relato:

- Mas ela deu sorte a filha da puta, passou um motoboy. Ela pediu socorro e sumiu. Dia desses, ela tava no mercado com uma lata de leite e um neston, quando ela me viu, largou o leite e o neston pra lá e saiu correndo...

E riu.

Depois começou a contar de quando bateu numa mulher com um "vestido longo vermelho" que deu em cima do “homem” dela, mas era o meu ponto e não pude mais ouvir historias tão românticas e angelicais...

Desci.


Eu que escrevo pacientemente ficção, às vezes fico pensando: quem precisa de personagens numa cidade como essa?

domingo, 16 de março de 2014

Rio pra inglês não ver (O sono dos mendigos)

Engarrafamento. A mulher, no ônibus ao meu lado, tem as unhas pintadas de roxo. É uma cor bastante estranha para as unhas, mas os obstinados nunca desistem das modinhas. Tal qual os motoristas obcecados por buzinas estridentes, basta uma parada de um minuto  e lá se vai a sinfonia adoentada. Olho pra trás e é um carro grande com um motorista sozinho, pra variar. Os homens são mesmo muito  estranhos , não desistem dos seus carrões, nem mesmo quando eles respondem por sessenta por cento do engarrafamento do qual querem se livrar, é como um gordo que tendo que emagrecer, comparece toda semana à confeitaria. A consciência é algo que o conforto não compreende...

Sinal verde. Atravesso a rua, subitamente feliz, só porque não tive que esperar pela passagem intoxicante dos ônibus e carros na minha cara e minha alergia agradece. Nunca fico curada.

As pessoas não olham ao redor, mas eu, porque decidi que olharia, que faria este blog, cujo pano de fundo é esse Rio que ninguém nunca vê; ou se vê , não se deixa atingir, olho. Um mendigo. Está sem camisa e tem o corpo todo tomado por uma grossa camada de poeira incrustada, como uma segunda pele. Sinto pena dele. Ele parece louco ou bêbado, mas são apenas seis da manhã.

 Mais à frente, um pivete vai andando com os pés enfiados num tennis de marca, no mínimo dois números acima do seu, também carrega uma mochila “descolada”, que parece vazia, nas costas. Os tennis saem dos pés a cada passo que ele dá , o que lhe dá um ar cômico,  mas mesmo assim ele parece orgulhoso e confiante. Quando subo a passarela e olho pra baixo , vejo que ele tenta se juntar a outros três pivetes conhecidos que batem ponto ali todo dia, os outros não lhe dão muita bola, os outros estão descalços. Mas ele continua tentando falar com eles. Tento ver o que acontece em seguida, mas sou empurrada pra frente e meu olhar  encontra uma cena triste: um homem e uma adolescente dormem no chão da passarela imunda, as cabeças se tocando. De perto, vejo que eles parecem pai e filha e ela, embora tenha no mínimo uns dezoito anos,  está com uma chupeta rosa na boca. A cena é chocante e, mesmo não tendo tido coragem de bater uma foto, a imagem não sai da minha cabeça.

 Passo pelos estivadores com meus óculos gigantes de hastes vermelhas e ouço um deles, falar: “ Olha só, essa só pode ser francesa, porque por aqui, não se vê isso”.Quase rio da piada, mas, entristeço  de novo quando  no ponto de ônibus um vagabundo conhecido, vem até o camelô que lhe dá o habitual biscoito e depois o enxota como se ele fosse um bicho. Todo dia ele dá um pacote de biscoito a esse mesmo vagabundo que chega cheio de marra exigindo o seu “café da manhã” e depois sai humilhado. Estranha transformação...

 Os ônibus aproveitam a parada dos outros  ônibus para passar direto pelo ponto fingindo que não veem os passageiros que ficam fazendo sinal em vão. É por isso que as pessoas amam os seus carros. Essa cidade é a zorra, a lei do cão, o “salve-se quem puder”.

Na volta pra casa durmo copiosamente dentro do ônibus, chego a babar literalmente esgotada de tanta miséria, de tanta estupidez, de tanto cenário  triste.

Custo a acreditar quando acordo e vejo uma sombra deitada no chão ao sol do meio dia. Estou falando de um canteiro de obras em frente à rodoviária. Ponho os óculos e vejo que é mesmo um homem que dorme naquele chão duro. Trinta metros depois, mais três mendigos dormem ao sol escaldante, esses  com cobertores velhos, deitados na poeira imunda,  cada um com o seu. Mais à frente o irônico cartaz do prefeito diz:  “Desculpe o transtorno. Estamos construindo uma cidade melhor!”


Daqui até o início dessa copa controversa, farei uma série de crônicas intituladas: “ Rio pra inglês não ver”


Não quero esgotar mais meus eventuais leitores...fica pra próxima!