terça-feira, 28 de março de 2017

Da série: RESENHAS LITERÁRIAS: Onde está Sandrine?




É possível gostar e não gostar de um livro?
Acho que sim, principalmente depois que li este estranho exemplar, comprado numa feirinha de livros a preço de banana: 10,00. O título é curioso, e pensei que talvez, vem desde essa época(a edição é de 1999) essa maluca atração(seria marketing?) por títulos estapafúrdios que circulam nos dias hoje nos meios literários. Este aqui se chama: “A cabeça no fundo do entulho”. Na capa está escrito:  “romance”.
Mas na contracapa o resenhista fala de três novelas. Como não li a resenha, pois só leio sobre o que falam do livro depois que o leio inteiro, pra não me influenciar (já que somos essa estranha terra de seres influenciáveis demais e, como eu detesto do fundo do meu coração tal condição miserável e luto contra ela), me abstenho disso. Portanto para mim, se tratava de um romance.
O livro é de leitura difícil, dado o estilo barroquista, atravessado, com pontuação de fôlego longo, cheio de citações paralelas, tentativas de poesia no meio, etc.  Isso não chega a ser um problema pra mim que adoro leituras difíceis,  e quanto mais difícil, melhor me sinto. Um traço masoquista, por certo.
Tudo começou bem. O personagem era um advogado, filho da puta como a maioria deles; mas com bom humor, culto, relativamente sensível, perspicaz, mulherengo, meio moralista demais pra um advogado e que tinha tesão em mulheres vulgares , como deixa transparecer ao ir logo pra cama com a cliente , sem cultura , interesseira, que herda uma fortuna que não pode gastar. É isso mesmo, ela recebe milhões em obras de arte de um tio que teria se envolvido em desvios e compras de roubos de pintores valiosos durante a segunda guerra. Como se sabe, o tema não é novo e até os americanos já fizeram filme sobre isso, com George Clooney. Porém, o livro é de 1999, então, pode ser que fosse um tema pouco conhecido na época: o de que os nazistas, o papa e a Santa Madre Igreja Católica são uns safados e ladrões de obras das famílias que abandonaram suas fortunas ao irem pra outros países fugindo da guerra...
Bom. Digerido o assunto, me doeu ver como a personagem feminina, apesar do nome horroroso: Sandrine, que este eu não pude digerir MESMO, tão bem descrita nas primeiras cenas como horrivelmente frívola, que quase temos pena dela e a amamos justamente por isso,  de repente, é lançada de um só golpe à categoria de amante, numa rapidez de fazer inveja a Hermes. Eu, que mal me acostumara com a prematura atração dos dois, quase banal, por ser tão rápida, não pude absorver bem aquilo. No “capitulo seguinte” o leitor é lançado a uma visão quase celeste de Sandrine na cama de nosso advogado. Mas, puxa, ele agora fala dela, como se ela fosse um anjo:

É muito bonita dormindo. Seus cabelos ruivos se espalham sobre as costas suaves (...)
Tem a pele branca , macia: parece mesmo(são imagens gastas) a pele de um longo bebê estirado (...)

O mesmo que páginas antes teria dito da personagem:

“ Sandra. Sandrine. Que pena. Você é bonita, mas...pense- de vez em quando, pelo menos.”  

A pior coisa que um autor pode fazer é trair um personagem...
Eu gostava de Sandrine vulgar, louca pela herança, a “vênus” romana deformada” ...rs. Quero minha Sandrine de volta!!! , pensei. Será que ele não tinha nada melhor a fazer com Sandrine  do que jogá-la na cama com o advogado?
Claro que não! Ele não podia deixar o advogado sem Sandrine, Sandrine sem o maldito advogado... é de praxe no cinema ( o autor tem influencia cinematográfica) as cenas de interesse sexuais.Na minha reles opinião , nem sempre essa mania do cinema invadir a literatura , dá certo. O contrário, é que sim, pois sabemos muito bem que é o cinema que precisa (e vive!)  da literatura e não ela dele...
E  lá estava aquela cena esdrúxula de tentativa de romantismo , numa história em que, na minha cabeça de leitora, não cabia.
E vamos mais: o autor tem muita informação pra dar. É culto, como observou o autor da orelha. Isso lhe permite que encha o seu livro com informações que passam de Piero della Francesca, Piero Di Cosimo, Duke Ellington, Mastroianni, Ascenso Ferreira, Ercolle Martteotti, Dino Risi e outros dos quais  muita gente jamais ouviu falar, cuspindo  informações culturais a torto e `a direita. Gosto de citações em textos literários... até certo ponto.Mas, já se sabe , isso é uma característica do texto pós- moderno e , principalmente , dos escritores que amam o cinema, ou simplesmente daqueles que tem cultura demais e não conseguem controlar o próprio discurso sem sair cuspindo tudo o que sabem(o que parece ser o caso desse escritor aqui).Seu discurso soa incontrolável, às vezes...
Voltando a Sandrine, ela tem um final borrado para uma personagem que já vinha perdendo a cor e a força ao longo da narrativa. E me espantei quando, no capítulo seguinte me deparei com a ausência de Sandrine, (já que a história parecia inacabada) e uma historia nada a ver com o escritor Camilo José Cella.
 Sem entender nada, mas curtindo muito a historia adorável (só porque eu amo de paixão histórias com escritores, não que fosse adorável, de fato, mas o era pra mim), que na verdade, parecia mais uma anedota em tamanho- família anexada no livro. Vi que havia algo estranho, já que Sandrine não voltava.
 Voltei pra orelha do livro e descubro que a historia de Sandrine  tinha ficado pra trás, não era um romance, eram 3 novelas!!! A editora classificou como romance por um erro, talvez. Então, eu que já vinha esperando um romance que envolvesse na mesma história, Camilo José Cella e Sandrine , fiquei totalmente desapontada.
A terceira história (terceira novela) e tão estranha que nem quero comentar. Parece saída de um filme americano. É a história de um agente inglês envolvido numa trama quase ininteligível. Com tiradas sarcásticas, códigos sinistros, pistas que não levam a lugar nenhum nem o pobre agente perdido numa trama, nem o leitor, que fica cansado e com saudade do James Bond. E, pra falar a verdade, agente de CIA pra mim, só mesmo Sean Connery, digo James Bond, ele mesmo.
É óbvio que se tratava de uma paródia, com todas as cores da parafernália cinematográfica e os chavões e eu estava justo pensando em Bond, quando o autor o cita numa página, numa falta de confiança no leitor(?), como se este não fosse capaz de entrevê-lo ali. E, sei lá, pra mim soou um pouco falso. Nada mais falso do que um escritor brasileiro escrevendo uma trama de espionagem inglesa, mesmo sendo uma paródia...
 De forma geral, gostei do estilo do autor pela desenvoltura em ser quem ele é. Admiro a coragem daqueles que escrevem parágrafos imensos cheios de travessões e parênteses, com citações muitas vezes desnecessárias, algumas que parecem estar ali por pura pretensão,  como se não existisse a pausa do leitor pra respirar. Uma herança proustiana, de quem aliás,  eu só li, pra deixar bem claro,  o Caminho de Swam.
E é por isso tudo que digo que gostei e não gostei do livro.  Devo dizer que o autor é: intrigante, irritante, pedante e tem uma memória cinematográfica admirável. O que podem ser consideradas boas qualidades num escritor...

https://www.youtube.com/watch?v=jao56su7bP4