quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Fahrenheit 451: o fogo numa caverna de Platão


   O filme do diretor Rami Bahrani,  originado do livro Fahrenheit 451 de Ray Bradbury publicado à época da  Guerra Fria,  mostra uma sociedade futurista onde livros são proibidos e queimados (a 451 graus F, o que dá título à obra) por um corpo de bombeiros com a função exclusiva de se dedicar a este feito.
   "O Instituto", como é chamado o “poder superior”, uma espécie de governo grande irmão, com olhos por todos os lados e verdades manipuladas, crê que “saber é se confundir”, portanto trabalha “a favor” da humanidade e do próprio sistema, poupando os indivíduos das escolhas que pretendem evitar.  Para o "bem" deles e da sua felicidade, obviamente. Assim lhes são proibidos a leitura, o conhecimento dos livros escritos e/ou do acervo da internet.

Imagem do filme (1966) de François Truffaut
 Para isso, naturalmente, embora tudo seja feito às claras e transmitido em redes coletivas , tudo é manipulado.  Até chegar a cena em que uma mulher é descoberta com uma biblioteca monstra e resolve incinerar-se junto com os seus livros. Ao morrer grita: “Omnis”.
  Depois se fica sabendo que omnis (do latim: inteiro, total, de todo tipo etc) é um dispositivo que contém todo o segredo, todo o conhecimento produzido pelos homens através da internet e que uma cientista guardou dentro de um pássaro, que deverá ser libertado e reproduzido rumo ao Canadá ou algo assim.
  Como na caverna de Platão, um dos integrantes do corpo de bombeiros, sai da sua ignorância ao salvar um dos livros que incinera todos os dias. O livro salvo não podia ser mais simbólico: “Notas do subsolo” de Dostoievski. Curioso,  começa a ler ao mesmo tempo em que descobre essa sociedade secreta que , entre outras coisas, decora livros de memória, além de serem detentores do “OMNIS”.
  Mais importante do que explorar o roteiro em si, já que o filme, não é lá grande coisa (cheio dos tradicionais clichês e pasteurizações dos filmes americanos) , é refletir sobre a rede de significados pontuados aqui e ali ao longo da história propriamente dita.
  Uma das personagens da sociedade secreta, Clarice, diz num certo momento:


“Não foi o instituto que fez isso conosco, nós fizemos isto a nós mesmos, as pessoas pediram  por tudo isso.”


  É difícil imaginar que os homens peçam por algo que os limita, como a própria ignorância que impede a sua liberdade. Mas é exatamente isso o que acontece. Também conosco, que estamos sujeitos a uma sociedade tomada pela ignorância coletiva, como uma bomba letal.
   A verdade, ”o caos do conhecimento “ , como diz o Capitão do corpo de bombeiros, é o que as pessoas evitam quando se negam a conhecer não os fatos, que esses podem ser transmitidos em praça pública , e cada um dá aos fatos a interpretação que bem lhe convém, mas sim, a verdade , ela mesma,  que nunca é fácil e é por si mesma escondida entre camadas e camadas de livros e publicações e memórias e acontecimentos e mentiras . É de se perguntar se ela existe.
  Ela é o caos, por si mesma.Não é algo que se encontra ali na esquina. 
  Não é que não exista, é que não é fácil encontrá-la e talvez seja até impossível, mas nem por isso, quer dizer que não exista. E afinal das contas, convenhamos, não tem muita gente assim interessada na verdade, ou melhor dito, no "caos do conhecimento".
  Conhecer dá trabalho. Não é serviço pra qualquer um...tem que se estar muito bem disposto (inclusive a algumas decepções,  como o pobre bombeiro, que jogou anos de sua vida por mentiras).
  As pessoas conhecem aquilo o que querem: geralmente apenas uma interpretação dos fatos. O que já configura que elas conhecem apenas aquilo, que, de antemão, já decidiram acreditar.
  E o fato de vivermos numa sociedade em que livros ainda não nos são proibidos, não melhora nem um pouco a nossa situação.
  Há gente que, de bom tom, prefere a ignorância escolhida. Há os que continuam a ver as sombras na parede, monótonas, e para sempre iguais. Há os que se arriscam ao acaso tenebroso, caverna adentro, para qualquer lado, às cegas, tentando enxergar, por sorte talvez,  uma luz no fim do túnel.
  E, poucos, talvez muito poucos, continuam sabendo que essa MERDA da verdade é um pássaro livre que corre continentes, sem nos dizer aonde vai...


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