segunda-feira, 31 de julho de 2017

Da série "Fora da Gaveta": Lembrança

   Ele era obcecado por coisas vivas, que se moviam, como eu mesma e minha paixão de borboletinha infantil por caramujos que se pregavam nas paredes úmidas, oleosas, pungentes, em sua vida preguiçosa que eu arrancava e olhava bem de perto como uma cientista na frente de uma célula. Tinha o talento objetivo e preciso de um cirurgião diante de veias inflamadas. Menininho de rua, olhos amarelos, aventureiro, sem camisa, sujo, sem espelhos, sangue italiano, subversivo, desses que se coloca debaixo de árvores para ver as pernas das meninas que lá subiam. Mas a obsessão era só comigo, a menininha “burguesa”, bem arrumada, de pele sardenta, cabelos macios, presos com laços coloridos no alto da cabeça. A dama e o vagabundo. As coisas vivas, ele as aniquilava numa sanha assassina: ratos, gatos, pombos, passarinhos. Acho que me odiava também, como se eu fosse um bichinho frágil, bonito demais pra que ele não tivesse vontade de ver por dentro e teria me dissecado, pedaço a pedaço, cada centímetro da minha pele, como um Dr. Victor Frankenstein, se pudesse. (...) 

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