domingo, 16 de março de 2014

Rio pra inglês não ver (O sono dos mendigos)

Engarrafamento. A mulher, no ônibus ao meu lado, tem as unhas pintadas de roxo. É uma cor bastante estranha para as unhas, mas os obstinados nunca desistem das modinhas. Tal qual os motoristas obcecados por buzinas estridentes, basta uma parada de um minuto  e lá se vai a sinfonia adoentada. Olho pra trás e é um carro grande com um motorista sozinho, pra variar. Os homens são mesmo muito  estranhos , não desistem dos seus carrões, nem mesmo quando eles respondem por sessenta por cento do engarrafamento do qual querem se livrar, é como um gordo que tendo que emagrecer, comparece toda semana à confeitaria. A consciência é algo que o conforto não compreende...

Sinal verde. Atravesso a rua, subitamente feliz, só porque não tive que esperar pela passagem intoxicante dos ônibus e carros na minha cara e minha alergia agradece. Nunca fico curada.

As pessoas não olham ao redor, mas eu, porque decidi que olharia, que faria este blog, cujo pano de fundo é esse Rio que ninguém nunca vê; ou se vê , não se deixa atingir, olho. Um mendigo. Está sem camisa e tem o corpo todo tomado por uma grossa camada de poeira incrustada, como uma segunda pele. Sinto pena dele. Ele parece louco ou bêbado, mas são apenas seis da manhã.

 Mais à frente, um pivete vai andando com os pés enfiados num tennis de marca, no mínimo dois números acima do seu, também carrega uma mochila “descolada”, que parece vazia, nas costas. Os tennis saem dos pés a cada passo que ele dá , o que lhe dá um ar cômico,  mas mesmo assim ele parece orgulhoso e confiante. Quando subo a passarela e olho pra baixo , vejo que ele tenta se juntar a outros três pivetes conhecidos que batem ponto ali todo dia, os outros não lhe dão muita bola, os outros estão descalços. Mas ele continua tentando falar com eles. Tento ver o que acontece em seguida, mas sou empurrada pra frente e meu olhar  encontra uma cena triste: um homem e uma adolescente dormem no chão da passarela imunda, as cabeças se tocando. De perto, vejo que eles parecem pai e filha e ela, embora tenha no mínimo uns dezoito anos,  está com uma chupeta rosa na boca. A cena é chocante e, mesmo não tendo tido coragem de bater uma foto, a imagem não sai da minha cabeça.

 Passo pelos estivadores com meus óculos gigantes de hastes vermelhas e ouço um deles, falar: “ Olha só, essa só pode ser francesa, porque por aqui, não se vê isso”.Quase rio da piada, mas, entristeço  de novo quando  no ponto de ônibus um vagabundo conhecido, vem até o camelô que lhe dá o habitual biscoito e depois o enxota como se ele fosse um bicho. Todo dia ele dá um pacote de biscoito a esse mesmo vagabundo que chega cheio de marra exigindo o seu “café da manhã” e depois sai humilhado. Estranha transformação...

 Os ônibus aproveitam a parada dos outros  ônibus para passar direto pelo ponto fingindo que não veem os passageiros que ficam fazendo sinal em vão. É por isso que as pessoas amam os seus carros. Essa cidade é a zorra, a lei do cão, o “salve-se quem puder”.

Na volta pra casa durmo copiosamente dentro do ônibus, chego a babar literalmente esgotada de tanta miséria, de tanta estupidez, de tanto cenário  triste.

Custo a acreditar quando acordo e vejo uma sombra deitada no chão ao sol do meio dia. Estou falando de um canteiro de obras em frente à rodoviária. Ponho os óculos e vejo que é mesmo um homem que dorme naquele chão duro. Trinta metros depois, mais três mendigos dormem ao sol escaldante, esses  com cobertores velhos, deitados na poeira imunda,  cada um com o seu. Mais à frente o irônico cartaz do prefeito diz:  “Desculpe o transtorno. Estamos construindo uma cidade melhor!”


Daqui até o início dessa copa controversa, farei uma série de crônicas intituladas: “ Rio pra inglês não ver”


Não quero esgotar mais meus eventuais leitores...fica pra próxima!

Um comentário:

  1. Fico imaginando se durante a copa a prefeitura não via dar um sumiço nesses mendigos, pelo menos por um tempo...

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