Engarrafamento. A mulher, no ônibus ao meu lado,
tem as unhas pintadas de roxo. É uma cor bastante estranha para as unhas, mas
os obstinados nunca desistem das modinhas. Tal qual os motoristas obcecados por
buzinas estridentes, basta uma parada de um minuto e lá se vai a sinfonia adoentada. Olho pra trás
e é um carro grande com um motorista sozinho, pra variar. Os homens são mesmo
muito estranhos , não desistem dos seus
carrões, nem mesmo quando eles respondem por sessenta por cento do
engarrafamento do qual querem se livrar, é como um gordo que tendo que
emagrecer, comparece toda semana à confeitaria. A consciência é algo que o
conforto não compreende...
Sinal verde. Atravesso a rua, subitamente
feliz, só porque não tive que esperar pela passagem intoxicante dos ônibus e
carros na minha cara e minha alergia agradece. Nunca fico curada.
As pessoas não olham ao redor, mas eu, porque
decidi que olharia, que faria este blog, cujo pano de fundo é esse Rio que
ninguém nunca vê; ou se vê , não se deixa atingir, olho. Um mendigo. Está sem
camisa e tem o corpo todo tomado por uma grossa camada de poeira incrustada,
como uma segunda pele. Sinto pena dele. Ele parece louco ou bêbado, mas são
apenas seis da manhã.
Mais à
frente, um pivete vai andando com os pés enfiados num tennis de marca, no
mínimo dois números acima do seu, também carrega uma mochila “descolada”, que
parece vazia, nas costas. Os tennis saem dos pés a cada passo que ele dá , o que
lhe dá um ar cômico, mas mesmo assim ele
parece orgulhoso e confiante. Quando subo a passarela e olho pra baixo , vejo
que ele tenta se juntar a outros três pivetes conhecidos que batem ponto ali
todo dia, os outros não lhe dão muita bola, os outros estão descalços. Mas ele
continua tentando falar com eles. Tento ver o que acontece em seguida, mas sou
empurrada pra frente e meu olhar
encontra uma cena triste: um homem e uma adolescente dormem no chão da
passarela imunda, as cabeças se tocando. De perto, vejo que eles parecem pai e
filha e ela, embora tenha no mínimo uns dezoito anos, está com uma chupeta rosa na boca. A cena é
chocante e, mesmo não tendo tido coragem de bater uma foto, a imagem não sai da
minha cabeça.
Passo
pelos estivadores com meus óculos gigantes de hastes vermelhas e ouço um deles,
falar: “ Olha só, essa só pode ser francesa, porque por aqui, não se vê
isso”.Quase rio da piada, mas, entristeço de novo quando no ponto de ônibus um vagabundo conhecido, vem
até o camelô que lhe dá o habitual biscoito e depois o enxota como se ele fosse
um bicho. Todo dia ele dá um pacote de biscoito a esse mesmo vagabundo que
chega cheio de marra exigindo o seu “café da manhã” e depois sai humilhado.
Estranha transformação...
Os ônibus
aproveitam a parada dos outros ônibus
para passar direto pelo ponto fingindo que não veem os passageiros que ficam
fazendo sinal em vão. É por isso que as pessoas amam os seus carros. Essa
cidade é a zorra, a lei do cão, o “salve-se quem puder”.
Na volta pra casa durmo copiosamente dentro do
ônibus, chego a babar literalmente esgotada de tanta miséria, de tanta
estupidez, de tanto cenário triste.
Custo a acreditar quando acordo e vejo uma
sombra deitada no chão ao sol do meio dia. Estou falando de um canteiro de
obras em frente à rodoviária. Ponho os óculos e vejo que é mesmo um homem que
dorme naquele chão duro. Trinta
metros depois, mais três mendigos dormem ao sol escaldante, esses com cobertores velhos, deitados na poeira
imunda, cada um com o seu. Mais à frente
o irônico cartaz do prefeito diz: “Desculpe
o transtorno. Estamos construindo uma cidade melhor!”
Daqui até o início dessa copa controversa,
farei uma série de crônicas intituladas: “ Rio pra inglês não ver”
Não quero esgotar mais meus eventuais
leitores...fica pra próxima!
Fico imaginando se durante a copa a prefeitura não via dar um sumiço nesses mendigos, pelo menos por um tempo...
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